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Cotidiano

Como é a rotina de quem vive em abrigos na região?

Conheça o dia a dia das crianças e adolescentes que vivem à espera da adoção

Vanessa Pimentel

Publicado em 22/07/2018 às 09:00

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Santos e São Vicente têm juntas nove casas de acolhimento / Rodrigo Montaldi/DL

Numa pequena sala anexa à garagem da casa, Luizinho* (nome fictício), um menino autista, dança sentado na cadeira em frente ao computador. A música que o embala é do cantor Belo. “Ele ama música”, diz Elizabeth Rovai, diretora da Casa Vó Benedita, em Santos.

O lar é um dos abrigos conveniados à prefeitura e tem como tarefa diária uma importante função: cuidar de crianças e adolescentes que vivem à espera das decisões judiciais capazes de mudar a família, o endereço e, principalmente, o futuro delas.

Na parede de um dos quartos do abrigo Arco-Íris, em São Vicente, o desenho nomeado à letra cursiva de “minha cozinha” traz, em diferentes tons de lápis de cor, a perspectiva frontal de um cômodo feliz. Pano de prato pendurado no fogão, panela, fruteira no canto da pia e porta-temperos.

A dona do desenho é a Isa*, uma menina de 17 anos que desde 2012 mora no abrigo. Tímida e sorridente, ela conta com orgulho que a pintura saiu de suas mãos. A cozinha dela fora do papel é diferente. Ampla e com muitos pratos sobre a mesa, Isa a divide com outras 16 crianças que, assim como ela, aguardam um desfecho para a própria história.

Juntos, os dois abrigos guardam a vida de 37 crianças que, em comum, dividem a falta de cuidados dos pais ou responsáveis. As circunstâncias que as impedem de morar na própria casa são diversas, mas parecidas.

“Aqui na Vó Benedita 80% das crianças que chegam vêm porque os pais são viciados em drogas”, explica Beth.

No Arco-Íris a realidade é semelhante. Há casos de violência física, psicológica, abandono, violações do direito infantil que as colocam em situação de risco.

Patrícia Laranja, diretora de Proteção Especial de Alta Complexidade do Arco-Íris explica que enquanto os menores não podem voltar para casa, vivem em abrigos até que a equipe multidisciplinar que analisa os casos ateste, junto à justiça, o retorno em segurança.

Composta por assistentes sociais, psicólogos, representantes do Conselho Tutelar e Poder Judiciário, a equipe trabalha em conjunto com a família que teve a criança retirada, promovendo encontros entre o menor e os responsáveis até que a volta para casa possa ser definitiva.

“Não há como falar em prazos, seis meses ou dois anos, quando se trata de crianças que, de alguma forma, tiveram seus direitos violados. Por isso, quando uma delas vem pra cá, cuidamos de todas as formas, não só para amenizar as feridas, como também tentar descontruir aquilo que ela acha normal, quando na verdade não é”, diz Patrícia.

Uma menina de oito anos, por exemplo, dizia ao psicólogo não ver problemas em apanhar, mesmo quando chegou à escola com uma costela quebrada. Após o caso ser denunciado ao Conselho Tutelar de São Vicente, a menina, hoje com 10 anos, aguarda que o Poder Judiciário decida o seu destino.

“Quando um caso chega é feita uma ampla análise, mas o que notamos é a normalidade com que as crianças relatam cenas que, para nós, são absurdas. Então é necessário todo um trabalho de discernimento, recuperação da autoestima e a desconstrução de que educar tem a ver com violência”, detalha Felipe Galvão, psicólogo do Arco-Íris.

O cenário muda quando, mesmo após o trabalho de acompanhamento realizado junto às famílias, o resultado não é o esperado.

“Infelizmente existem casos onde a criança não pode voltar aos familiares biológicos nem à família extensiva (avós ou tios, por exemplo) porque, se voltar, sofrerá de novo. Quando isso acontece, a justiça acaba determinando a adoção”.

A rotina

“A rotina das crianças e jovens que moram em abrigos é igual à de qualquer outra criança”, explica Beth.
Às seis horas da manhã os despertadores começam a tocar. Após o café, elas se encaminham para as escolas públicas, geralmente no bairro onde está instalado o abrigo.

Ao voltarem para casa, almoçam e ganham algumas horas livres que podem ser aproveitas jogando vídeo game, brincando, vendo TV ou dormindo. No meio da tarde tem um lanche, momento em que as funcionárias olham as agendas escolares e verificam a lição de casa.

Na troca de turno dos funcionários, às 19h, as crianças tomam banho e usam o resto da noite da maneira que preferirem, até a hora de dormir.

Aos finais de semana e durante as férias, visitas e passeios promovidos por voluntários mostram os lugares que existem fora do lar provisório. Não precisa ser a Disney. Para crianças nesta situação conhecer o zoológico de São Paulo ou brincar no parquinho da praia, por exemplo, é de um valor inestimável.

A estrutura dos abrigos lembra a de casas de temporada, visto a quantidade de camas e beliches nos quartos e das roupas penduradas no varal. Contudo, todos muito limpos, com brinquedos à vontade e cuidados também.

A chegada

As crianças que chegam aos abrigos são encaminhadas pelo Poder Judiciário e permanecem lá até que sejam adotadas ou retornem ao lar de origem, de acordo com a determinação judicial de cada caso.

Os adolescentes

 

Santos possui cinco casas de acolhimento, duas municipais e três conveniadas à prefeitura. Em São Vicente existem quatro - duas municipais e duas conveniadas.

 

Todas recebem desde bebês até jovens, mas a preocupação aumenta quando, esgotadas as negociações entre familiares e pessoas interessadas em adoção cessam, e o jovem próximo de completar 18 anos permanece sem um lar definitivo.

“A escolha de perfil dos pretendentes foge da realidade dos abrigos. Hoje, já é maior o número de pessoas que se interessam em adotar crianças maiores de dois anos, mas a maioria ainda prefere bebês”, comenta Beth.

Felipe é enfático ao dizer que 95% de quem moram em abrigos são negros. “Há registro de um adolescente de 16 anos que no dia da visita dos pretendentes passou cal no corpo para tentar esbranquiçar a pele e aumentar a chance de ser adotado”. Histórias como esta mostram a urgência na mudança de perfil de quem se diz disponível em adotar alguém.

“Nem na gravidez biológica temos como definir exatamente as características físicas e psicológicas das pessoas, não há porque se exigir isto na hora da adoção”.

Questionados sobre o que acontece com os adolescentes que completam a maioridade sem serem adotados, os entrevistados explicam que a Justiça concede prazos semestrais renováveis para que eles se mantenham nas casas de abrigo até que consigam a sua própria autonomia.

“Eles não saem desamparados. Participam do projeto Jovem Aprendiz e quando conseguem se firmar no mundo profissional, seguem a vida”, diz Beth.

Ela é defensora dos programas de apadrinhamento existentes em alguns municípios. Na prática, a ação permite que pessoas que não tenham interesse em adotar, mas querem fazer a diferença na vida das crianças abrigadas façam passeios e até fiquem com elas por determinado período, durante as férias, por exemplo.

Porém, falta consenso em relação a programas como este. “Tem gente que defende porque acredita que é uma forma de fazer com o tempo que a criança passa aguardando a adoção seja menos penoso. Outros acreditam que pode trazer sofrimento, já que a realidade dela é bem diferente da vivida durante o período de apadrinhamento”, justifica Patrícia.

Já Beth diz que este tipo de convívio aumenta muito a chance, principalmente dos adolescentes, de uma possível adoção. Como um caso de uma moça de 17 anos que não tinha conseguido ser adotada por falta de interesse dos pretendentes da fila de adoção. Quando os padrinhos que a acompanhavam há anos souberam que ela sairia do abrigo sem uma família, manifestaram interesse em adotá-la e através de procedimentos jurídicos específicos para estes casos, conseguiram.

“Hoje, finalmente, ela tem uma família”, emociona-se Beth.

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