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Entrevistas

Jair Lima Krischke: 'Louvar Ustra é crime, é fazer apologia ao crime'

Ex-funcionário do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), ele teve atuação decisiva no esclarecimento do sequestro dos uruguaios Universindo Díaz e Lilian Celiberti por militares do país vizinho

Carlos Ratton

Publicado em 05/11/2018 às 10:10

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Jair Lima Krischke preside o Movimento de Justiça e Diretos Humanos (MJDH), sediado em Porto Alegre / Paolo Perillo/DL

Veterano lutador contra o terrorismo de estado na América do Sul, Jair Lima Krischke preside o Movimento de Justiça e Diretos Humanos (MJDH), sediado em Porto Alegre. Ex-funcionário do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), ele teve atuação decisiva no esclarecimento do sequestro dos uruguaios Universindo Díaz e Lilian Celiberti por militares do país vizinho em conluio com autoridades brasileiras, ocorrido em 1978 (plena ditadura militar), na capital gaúcha.

De lá para cá, investigou e registrou vários casos semelhantes, compondo, a partir deles, um valioso arquivo. O MJDH é uma organização não-governamental brasileira fundada em 25 de março de 1979. Antes mesmo de seu registro oficial, o Movimento já atuava desde os anos 70, quando foi responsável por fornecer ajuda a militantes que fugiam das ditaduras militares latino-americanas.

Desde 1984, a entidade promove, em conjunto com a Ordem dos Advogados do Brasil, o Prêmio Direitos Humanos de Jornalismo, oferecido às matérias jornalísticas mais relevantes em torno da defesa da dignidade humana. Veja os melhores trechos da entrevista:

Diário - O senhor é jurado de morte?

Jair Lima Krischke – Os amores antigos são para sempre. Militares uruguaios que, durante e pós-ditadura, eu os denunciei. Eles se autodenominam Comando General Pedro Barneix (acusado de crimes contra a humanidade durante a ditadura no Uruguai cometeu suicídio). Todas as organizações de direitos humanos do Uruguai não sabiam que ele, quando jovem tenente, havia participado de uma sessão de tortura, que resultou na morte de um cidadão. O Ministério Público apresentou denúncia, ele foi intimado a depor e não compareceu. A polícia foi buscá-lo e, alegando estar mal vestido, entrou e se matou com um tiro na cabeça. Desde então, este grupo vem perseguindo quem denuncia.

Diário – Como o senhor descobriu ser alvo desse grupo?

Krischke – Um coronel repressor, responsável por mais de 100 mortes e desaparecimentos na conhecida Operação Condor, idealizada no Brasil e batizada no Chile, concedeu uma entrevista a um jornal uruguaio ressaltando a tortura. Ele foi denunciado pelo Ministério Público por apologia ao crime, também não compareceu e fugiu para o Brasil, estabelecendo-se no Rio Grande do Sul. Durante cinco anos, nós o investigamos, o localizamos e denunciamos. Ele foi condenado a 25 anos de prisão. Esse trabalho do MJDH, mais o suicídio do Barneix, fez com que seus velhos apoiadores fizessem uma lista de pessoas que seriam assassinadas e eu sai premiado. 

Diário – O que o senhor fez para garantir sua vida?

Krischke – Ingressei com uma medida cautelar na Comissão Interamericana de Direitos Humanos e, agora, estou voltando a Montevideo, para receber homenagens do parlamento uruguaio pelos meus 80 anos de vida e em reconhecimento ao trabalho do MJDH. O Estado Uruguaio está colocando seguranças a minha disposição, por determinação da Organização dos Estados Americanos (OEA).

Diário – Carlos Alberto Brilhante Ustra, antes de morrer, foi reconhecido pela Justiça Brasileira como torturador. Como o senhor avalia essa decisão?

Krischke – Lamentavelmente, era gaúcho como eu. Foi o torturador emblemático do Brasil. A condenação dele foi uma ação declaratória. Quem o processou queria apenas que a Justiça o declarasse torturador. Não exigiu nenhum centavo de reparação e nem cinco minutos de prisão. Louvar Ustra é crime, é fazer apologia ao crime. Tenho visto faixas o louvando. Tortura é um crime hediondo. É lamentável que alguém tenha um comportamento desse. Isso é grave e preocupante. 

Diário – Como o Brasil é visto no Mundo com relação aos Direitos Humanos? 

Krischke – O Brasil não puniu nenhum autor de crime de lesa humanidade. A lei de anistia se tornou de autoanistia porque livrou torturadores. O artigo primeiro garante anistia a crimes políticos e conexos. Uma criatura mais ou menos alfabetizada é capaz de entender o que está escrito. A lei de anistia é de agosto de 1979. Em fevereiro de 1980, os presos políticos fizeram greve de fome e não foram anistiados. O Estado Brasileiro cometeu crimes contra a vida e lesa humanidade. O Uruguai, o Chile, a Argentina, o Paraguai condenou, tirou as patentes militares, prendeu os ditadores e os torturadores. No Brasil, nem um cabo da guarda é sequer molestado. Aqui, se arma todo um alvoroço quando alguém pede justiça. Essa é a triste verdade brasileira.

Diário – O Brasil já foi punido?

Krischke – A Organização das Nações Unidas (ONU) já nos puniram e a Corte Interamericana de Direitos Humanos por três vezes. O Brasil não cumpre a sentença. Nem nos governos Lula e Dilma. Ela determina a publicação da punição em um jornal de grande circulação nacional e isso nunca foi feito. Também determina pedido público de perdão às famílias das vítimas torturadas e mortas e não foi feito. Também manda punir os autores e nada. 

Diário - Como o brasileiro vê o próprio país com relação aos Direitos Humanos?

Krischke – Desinformado. Não se estuda. A Ditadura Brasileira foi de terror. Além de censurar a imprensa e as artes, de violar direitos humanos, cassou professores, servidores e prendeu alunos. Era proibido se comentar em casa e na escola. Temos uma geração que não sabe o que aconteceu e nem procura saber, que vai gerar outra que saberá menos ainda. Isso é gravíssimo. Na Argentina, por exemplo, são realizados trabalhos de mestrado e doutorado. Existe uma imensa bibliografia sobre os assunto. Uma filmografia grande também no Uruguai. No Brasil, se faz pouco e ainda não se divulga. As televisões brasileiras, nem as educativas, não reservam horário nobre para contar o que foi a ditadura.

Diário – Há exemplos recentes de violação de Direitos Humanos?

Krischke – O grande violador dos direitos humanos é o Estado Brasileiro, da esfera municipal à federal. Sonegamos saúde, não cuidamos da educação, não promovem saneamento básico, desprezamos a velhice, não cuidamos das crianças. Tudo isso é praticado pelo Estado. Os brasileiros não se dão conta disso. A Ditadura Brasileira foi hábil na conhecida guerra psicológica como forma de denegrir os Direitos Humanos. 

Diário – É a frase rasa que diz: bandido bom é bandido morto?

Krischke – As pessoas tomam isso como verdade ou alternativa até que se tornam vítimas. Temos no País a polícia que mais mata. Viola os direitos humanos 24 horas por dia. Lamentavelmente, a Polícia Militar é uma das heranças da Ditadura. Foi instituída por um decreto lei em 1968, ano em que se iniciou a fase mais dramática e perversa do golpe. Polícia é um aparelho do Estado destinado a dar segurança aos cidadãos, até os que violam as leis, pois esses também têm direito à segurança. Militar é treinado para enfrentar o inimigo, vencê-lo e submetê-lo a sua vontade. Então, é impossível juntar polícia e militar. No entanto, as polícias militares foram acolhidas na Constituição de 1988. Elas são forças auxiliares do Exército e isso é um absurdo em qualquer lugar do Mundo e é uma das matrizes de violação dos Direitos Humanos. 

Diário - As pessoas que moram em comunidades carentes são as maiores vítimas?

Krischke – Estão abandonadas pelo Estado. A população carcerária também e tudo isso resulta em corrupção. Além de termos a polícia que mais mata, temos a mais corrupta do Mundo. Quando o Governo Federal decidiu pela intervenção (Rio de Janeiro), o ministro da Justiça fez um comentário alertando que todos os comandantes de batalhão estavam envolvidos com o crime organizado. Houve uma reprimenda, os militares ameaçaram processá-lo e o assunto morreu. Ele tinha e continua tendo razão. É impossível se pensar em segurança pública quando o mote é matar bandido. Nunca se matou e se prendeu tanto no Brasil. Temos a terceira maior população carcerária do Mundo e continuamos não tendo segurança. Alguma estratégia está errada. 

Diário – Como deve ser a relação dos governos brasileiros com a América Latina no quesito Direitos Humanos?

Krischke – Recentemente, o futuro ministro da Economia, o Paulo Guedes, se dirigiu a uma repórter de forma agressiva quando questionado qual seria a relação do Brasil com o Mercosul (Mercado Comum do Sul). Ele disse que o Mercosul não era prioridade. Ao dizer isso, já foi criada uma situação complicada com os países membros. Então, no campo internacional, temos que apostar muito no Itamaraty (Ministério das Relações Exteriores), que tem um corpo técnico muito qualificado e que vão aconselhar que o caminho não é esse. É mentira que o fator ideológico influenciava a política externa brasileira. O núcleo do Itamaraty foi sempre muito zeloso. Tirar a embaixada de Tel Aviv e transferi-la para Jerusalém é um absurdo. O Mundo inteiro protestou quando os EUA fizeram isso. O Paraguai fez isso e voltou atrás. O Brasil tem um papel importante no Conselhos das Nações, não pode ter posição dúbia e inconsequente. 

Diário – A questão dos Direitos Humanos tem que ser apartidária?

Krischke – Sim e tem que ser sempre assim. É muito importante que todos saibam que uma brilhante mulher, Eleanor Roosevelt, foi a encarregada de fazer com que a Declaração Universal dos Direitos Humanos fosse aprovada em dezembro de 1948. Os representantes diplomáticos da União Soviética também tiveram fundamental importância. Um brasileiro também trabalhou na redação da declaração: Austregésilo de Athayde (escritor e jornalista que, em 1948, participou da delegação brasileira na III Assembleia Geral das Nações Unidas, realizada em Paris, e integrou a Comissão Redatora da Declaração Universal dos Direitos do Homem). Pouca gente sabe disso. Então, não se deve atrelar Direitos Humanos a partidos ou ideologias. Eles estão acima disso. São regras de convívio social e não comportam limitações. Todo ser humano deve ser respeitado na sua dignidade. Isso vale em Washington, em Londres, Moscou e deveria valer em Brasília.

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